Muitas vezes, somos levados a pensar que toda prática oracular é mediúnica. No caso do Tarô, a mediunidade fica em segundo plano e cede lugar, durante a leitura, à supremacia das cartas, chamadas de Arcanos. Isto quer dizer que não podemos extrapolar o que estes nos dizem, sob o risco de impormos o nosso ponto de vista e de oferecermos uma perspectiva contaminada ao consulente.
Numa tiragem, os Arcanos são combinados e nos contam uma história. Ao lermos a narrativa trazida por eles, oferecemos ao consulente indicações simbólicas, as quais vão fazer sentido em sua vida e vão ajudá-lo a encontrar as respostas de que necessita. O cliente é o dono da sua própria história, inclusive durante um jogo de Tarô. Nós, tarotistas, não chegamos a uma leitura conhecendo a verdade. Junto com o cliente, navegamos nos símbolos, a montarmos um quebra cabeças muito elucidativo.
Cada arcano retrata uma cena, em que estão sintetizados significados que se ligam a tempos históricos muito distantes. Além disto, uma carta de Tarô, dado o seu poder arquetípico, permite-nos fazer uma viagem ainda mais longa e difícil até o inconsciente individual e o coletivo. Não é necessário algo além do que está nas cartas, para que possamos decifrar a sua mensagem e alcançar este âmbito da existência humana. Todavia, o conteúdo de um arcano é quase infinito. A seleção do que nele está contido é feita pela intuição, mas aquela seleção não prescinde do conhecimento prévio da simbologia tarológica.
Permita-me demonstrar o caminho que se faz na interpretação de uma carta, numa consulta de Tarô. Usarei como exemplo o Arcano Maior nº 2, Sacerdotisa.
A Alta Sacerdotisa do Tarô de Visconti Sforza homenageia a papisa Manfreda Visconti, antepassada de Filipo Visconti, patrono deste deck de cartas italiano, criado em 1441.
Trata-se do primeiro arquétipo feminino do tarô. Na carta, vemos uma sacerdotisa sentada, imóvel e impassível, entre as duas colunas que marcam a entrada do templo de que ela é a guardiã. Atrás, um véu indica que não conseguiremos, facilmente, ver os segredos guardados pela enigmática mulher.
Este poderoso Arcano remete-nos à história de Manfreda Visconti, uma mulher que chegou ao posto de Papa, entre os anos de 1280 e 1300, ano em que foi assassinada pela inquisição, na Itália. Porém, outras deidades são evocadas. O arcano Sacerdotisa leva-nos à deusa egípcia Isis, além de nos fazer mergulhar na Cabalah e encontrar Shekinah. Liga-nos, ainda, à lua e a sua qualidade cíclica e mutável, o que, por sua vez, lança-nos no elemento água.
Esta carta nos fala da concepção de uma vida, que ocorre no escuro uterino, ou no fundo da terra, espaços em que os nossos olhos não alcançam, onde ocorre uma magia que nos fascina e nos amedronta, desde sempre. Conceber a nós mesmos, por sua vez, implica fecharmos os olhos, para podermos olhar para dentro, até alcançarmos o fundo da nossa mente. Atravessando-a, poderemos vislumbrar, mesmo que de relance, o mistério que existe para além das colunas do templo da Sacerdotisa. Eis porque este arcano é considerado a representação do próprio Tarô.
Numa leitura, a Sacerdotisa tem a ver com estados de espírito reflexivos e oscilantes, ou com momentos de silêncio e de inércia, em que chegamos a estar tontos pelas luzes que piscam diante e dentro de nós. Somos levados, por este Arcano, a revistar as nossas memórias e a tocar as nossas ilusões e anseios. Mais do que isto, somos informados de que a vida na Terra não se restringe ao que percebemos através dos cinco sentidos.
Mais concretamente ainda, a Sacerdotisa, dentre outras coisas, pode ser o retrato de uma relação mal resolvida com uma mãe, um relacionamento amoroso que se esfriou, uma vida financeira que não indica grandes mudanças no curto prazo, ou, ainda, uma pessoa em busca de se conhecer melhor, aberta para o tudo que brotar das suas profundezas internas, ou que se lhe chegar pela via espiritual.
Sem aquele conhecimento, a leitura fica mais pobre, porque, na combinação das cartas, esta Sacerdotisa pode permitir outras interpretações. Inclusive, ao descrevermos a simbologia de um arcano, o cliente faz uma conexão própria, que o levará a rever uma situação do passado, seja ela benéfica ou traumática. Isto o ajudará a superar um incômodo presente.
O que uma leitura de tarô promove, pela via simbólica, é a construção de um caminho no qual o tarólogo convida o consulente a passear. Ao ser apresentado à enorme riqueza arquetípica dos Arcanos dispostos num jogo, ele passa a ler as cartas em conjunto connosco. É esta faceta interativa que tem feito do Tarô um dos oráculos mais queridos, desde, pelo menos, os tempos da papisa Manfreda.
O uso da razão é considerado o valor máximo da cultura ocidental. O aprimoramento do método científico e a centralidade do modelo cartesiano deram-nos a possibilidade de evoluirmos tecnologicamente, porém massacrou a nossa capacidade imaginativa e ampliou significativamente a força das estruturas mais dogmáticas de poder.
A humanidade ocidental foi-se atrofiando, no que diz respeito ao uso da linguagem simbólica como um meio de explicação da realidade. Jogamos para debaixo do tapete existencial uma gama enorme de conhecimentos acumulados ao longo de milénios, conhecimentos estes que passaram a ser rechaçados e, em alguns momentos, foram, inclusive, considerados ilícitos.
Contudo, uma civilização sem a componente abstrata não é viável. Assim, aos poucos, temos visto a recomposição do ‘esoterismo’ e a sua inclusão entre as áreas de saber consideradas legítimas. Tal avanço é, em grande parte, devido à teoria de Carl Jung em torno do inconsciente coletivo. Este pode ser compreendido como uma espécie de baú, onde estão guardados inúmeros referenciais simbólicos, derivados de narrativas ancestrais. Por meio deles, somos capazes de representar sensações, sentimentos e perceções, impossíveis de serem traduzidos em sentenças discursivas ou em equações aritméticas.
Atualmente, percebemos que o número de interessados em aprender ou em se consultarem com os mais diversos oráculos aumentou sobremaneira. Independentemente do contexto de origem ou da classe social, muitos homens e mulheres ocidentais têm buscado estas ferramentas para acederem os meandros mais obscuros das suas individualidades, bem como para interpretarem fenómenos sociais. A tarologia, especialmente, tem vindo a ganhar com esta retomada.
O Tarô é um dos oráculos mais conhecidos dentre todos. A Antropologia demonstra que, para o homem e a mulher sob influência da cultura euro-americana, a sua presença no cotidiano das famílias e das comunidades tem sido constante. Muitos podem pensar que ele é utilizado como jogo lúdico, porém, é preciso lembrar que o uso das cartas para a interpretação do passado e do presente e para a previsão do futuro precede o recreativo. Isto, porque, cada Arcano é um artigo exemplar daquilo que Jung chama de arquétipo.
Entende-se por arquétipo uma imagem síntese de uma mensagem multifacetada e muito mais ampla do que um conceito. Diferente deste, o arquétipo não está restringido por uma fórmula. Ele é um verdadeiro disparador de possibilidades interpretativas, as quais variam de acordo com os olhos de quem o lê e das circunstâncias em que ele é lido.
Todos sabemos o que significa um Carro, um Louco, um Imperador, ou um Eremita. Igualmente, compreendemos o mito do Julgamento, a beleza transmissora da esperança da Estrela, a presença desconcertante e contraditória do Diabo etc. Sendo assim, a leitura do Tarô transmite ideias e sugestões, capazes de aguçar a imaginação dos envolvidos na consulta e de fazê-los encontrar, instintivamente, respostas para os seus dilemas e caminhos para o autoconhecimento.
O que está contido numa carta é, portanto, facilmente compreendido pelo inconsciente individual e é desta identificação que resulta a magia oracular do Tarô. Ao consultarmos os Arcanos, acessamos aquele grande baú e passamos a falar a língua dos sonhos e do espírito. Graças a esta transcendência, viajamos no tempo e enxergamos o que não se enxergaria com um régua ou com um microscópio.
O grande desafio da nossa humanidade, a meu ver, consiste em recuperar a gramática dos símbolos e voltar a fazer dela uma porta de acesso ao campo subtil da nossa existência. Serão, com este desbloqueio, curadas muitas doenças psicossomáticas e corrigidos os rumos da História, de modo a fazermos as pazes com a Natureza.
Mais do que tudo, com o retomar da nossa capacidade de compreendermos a vida também através da linguagem arquetípica, ampliaremos enormemente a nossa mentalidade e recriaremos o mundo, a partir de bases intelectuais maleáveis e, por isto mesmo, libertadoras.